Panorama do livro para jovens

 Mundialmente, a série Harry Potter vendeu cerca de 600 milhões de exemplares, até dezembro de 2011, em mais de 67 idiomas. O livro da série que mais vendeu foi Harry Potter e a Pedra Filosofal com cerca de 120 milhões de cópias comercializadas.


1 | UM POUCO DE HISTÓRIA
Assim como a evolução da “literatura” para crianças, a de jovens percorreu um longo caminho. Até muito recentemente, as diferenças entre estes dois segmentos eram pouco explícitas. Retomemos os três grandes momentos desta evolução:

Narrativas primordiais de caráter mágico + tradição dos relatos medievais e renascentistas.

Contos clássicos pioneiros, que seguem também a mesma tradição das narrativas populares.
» Charles Perrault (1628-1703)
» Irmãos Grimm (Jacob – 1785-1863 | Wilhelm – 1786-1859)
» Hans Christian Andersen (1805-1875)
Até Hans Christian Andersen a preocupação com a infância é algo distante – a diferença entre estes autores corresponde aos diferentes momentos históricos em que cada um se insere – a violência presente nos contos de Perrault cede espaço a um humanismo, que dá lugar ao sentimento maravilhoso da vida. O predomínio do mundo maravilhoso dos Irmãos Grimm, muda de foco com Andersen que joga para a realidade concreta do cotidiano o terreno onde o maravilhoso é descoberto.

Tradição dos livros de doutrinação produzidos em nome de uma educação moral, cuja origem se encontra intrinsecamente ligada ao processo de afirmação social da infância:
» Séc. XVIII = Período de “afirmação afetiva da infância”, do reconhecimento da criança como agente social que é a base para a construção social do conceito de infância fruto da intensificação do processo de alfabetização.
» Séc. XIX = Descoberta de um ser que precisa de cuidados específicos para sua formação humanística, cívica espiritual ética e intelectual. Criação do “mito da infância” como a “idade de ouro do ser humano” à surgimento da preocupação com uma leitura que serviria à infância.
» Séc. XX = Descoberta da qualidade específica de ser criança ou adolescente.

Trata-se de livros diretamente escritos para crianças e jovens, de caráter “didático” e de tradição realista.
 A “vontade educativa” desta tradição vai se converter no que Teresa Colomer chama a “madrasta pedagógica” do livro infantil. Livros que são escritos com o objetivo claro de doutrinar crianças e jovens.

O fato de essa tradição ter relegado ao esquecimento suas origens não quer dizer que tenha desaparecido. Ao contrário, revestida de novos conteúdos – valores politicamente corretos, temas transversais, etc. – vai ser responsável pelo caráter ambíguo que marca até hoje a chamada literatura juvenil.

a | Chegando à maioridade
» Esta literatura ganha corpo e independência na estreita relação com o desenvolvimento das concepções de “infância”, – e mais tarde dos jovens –, de educação, de leitura, de bibliotecas, de promoção e formação de leitores – conceitos que nascem e se desenvolvem em paralelo durante o período entre guerras em alguns países da Europa e nos USA.

» A reflexão teórica sobre esta literatura e o surgimento da crítica responsável pelo seu universo conceitual se origina do embate entre leitura formativa (função educativa) X leitura livre promovida pelos bibliotecários (função literária).

» Pensar criticamente a chamada literatura para jovens pressupõe não perder de vista este conjunto de determinantes onde ela se insere e se move e sua estreita relação com a promoção da leitura.

b | Questões em torno de sua definição enquanto objeto
» O que define esta literatura?
» Esta literatura existe como fenômeno literário?
» Como ela se define em relação à literatura adulta?
» Gênero menor X verdadeira literatura?
» O que a define: autores, receptores, mediadores?
» Livros escritos, avaliados e comprados pelos adultos e lidos pelo leitor final?
» A quem estão dirigidas afinal estas obras? Aos leitores? Aos mediadores?
» Qual sua finalidade?
» Clássicos X literatura contemporânea?
» Qualidade literária X receptor em formação?
c | A Grande expansão da LIJ – Décadas de 1960-1970
“A discussão se desloca, mais do que procurar marcas de literariedade, procura-se definir os traços específicos da LIJ e julgar as obras pelo seu êxito no uso das convenções do gênero. A imaturidade linguística, emocional e intelectual dos receptores determina precisamente as limitações inerentes ao gênero.”
Teresa Colomer

Novo contexto:
» Expansão da edição
» Mudança nos valores na educação
» Experimentalismo literário
» Surgimento da novela juvenil como fenômeno literário, reflexo da expansão da escolarização, novo público
» Aparecimento de diferentes ofertas: literatura de qualidade X consume massificado de produtos estereotipados.

Entrada do livro na escola
» Classificação por idades = orientação para os mediadores
» Reforço do caráter educativo dos livros – aparecimento das novelas juvenis + narrativas que facilitem a transmissão de temas e valores transversais – processo gradual de expulsão da fantasia e transformação dos livros em panfletos
» Investimento nos aparatos didáticos como os guias de leitura e os cadernos de atividades
» Surgimento dos primeiros livros informativos – ampliação dos gêneros
d | Algumas questões para pensar o livro juvenil
» Nicho de mercado em forte expansão.
» Forte relação com a escola, mas não só, “educação” de novas gerações.
» Raízes na literatura “edificante”, “pedagógica” – ficção à serviço da educação.
» Erro frequente: acreditar que as obras contemporâneas se destituíram desta intenção educativa.
» Esta presença assume formas veladas.
» Pedagogia invisível (Daniel Delbrassine – Basil Bernstein):
“A diferença fundamental entre as pedagogias visível e invisível está na maneira como cada princípio é transmitido e no grau de especificidade do princípio. Quanto mais a transmissão se dá de uma maneira implícita e sobre princípios gerais, mais a pedagogia é invisível.“
» Conceito no plano ético (valores e conteúdos presentes na literatura – Teresa Colomer – relação entre as mudanças educativas na sociedade e a evolução dos valores presentes na literatura contemporânea dirigida aos jovens).
Obras juvenis contemporâneas desde um ponto de vista literário (Daniel Delbrassine):
» Desaparecimento dos discursos moralisadores de antes
» Desaparecimento dos propósitos abertamente ideológicos ou morais
» Presença de uma mensagem implícita
A questão é compreender por quais procedimentos os autores conseguem manter uma importante carga moralizadora ou educativa nas histórias que, à primeira vista, pareceriam não carregar nenhum. Quais são os processos implícitos de persuasão do leitor?

Esclarecimentos pela teoria literária da novela.
“Contar uma história para comunicar ‘outra coisa – um conhecimento, uma convicção, isto é um ensinamento qualquer – assim como foi, durante séculos, a ambição não apenas dos predicadores e dos moralistas de toda espécie, mas também, de uma maneira formulada mais ou menos clara, dos romancistas. (…) Um dos elementos constantes da vertente ‘realista, é o elemento didático, o desejo de dizer (ainda que de forma indireta) alguma coisa.” Susan Suleiman (1977)

e | Mas quem é este jovem leitor?
» Projeção de sua própria imagem sobre a narração – cumplicidade, identificação.
» Identificação com diferentes aspectos da ação narrativa ou com alguns protagonistas com os quais sente-se “reconhecido” ou “descoberto”.
» Peso excessivo da leitura autobiográfica, em detrimento de outros mecanismos leitores como o conhecimento literário, a consciência do mundo.
» Densidade leitora frágil – leitores em processo de formação. Alto grau de “porosidade”.
» Pouca crítica e autocrítica.
“Convém notar que esse mecanismo de projeção pode aparecer sob a forma de uma contra-projeção mais ou menos violenta na qual se escondem ou rejeitam aspectos autobiográficos que perturbam, irrompem ou questionam o “eu” desejado ou desejante. Dir-se-ia inclusive que a própria estrutura do narrativo parece solicitar essa atitude do leitor, embora possa e deva distinguir-se entre o que a narração exige como gênero e aquelas narrações que se constroem de maneira deliberada contando com essa atitude por parte do leitor. Nesse caso bem poderíamos falar de narrações adolescentes e não se entenda por elas apenas aquelas – embora também – que se elaboram pensando nos leitores mais jovens. Outra coisa é que algumas narrações, mesmo sem terem sido escritas procurando explicitamente esse destino cúmplice, reúnam ingredientes que facilitem as inclinações para a identificação dos leitores mais jovens.” Constantino Bértolo.
Leia entrevista do autor na Revista Emília: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=428

“No final dos finais, os bruxos crescem, saem da adolescência e se convertem em pais e mães de família, como era de se esperar e talvez temer. A idade das bruxarias termina em paternidade responsável e o último feitiço lançado, o mais difícil e mais necessário, é aquele que enviamos para proteger e abençoar as crianças que vão continuar a viver a aventura eterna no nosso lugar.” Fernando Savater (El País, 23/2/08)

f | “A geracão perdida”
» Uma convicção reiterada = “a falta de hábito de leitura dos jovens”
»»» Bienal do livro de SP | maiores vendas – livros juvenis. (Veja notícia em http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/tag/bienal-do-livro-de-sao-paulo/

 A palestra de Cassandra Clare causou grande tumulto na feira. Mais de 4 mil fãs, quase todos jovens, passaram a madrugada no parquet do Anhembi, local da Bienal, para conseguir uma senha para a sessão de autográfo. (FSP 24/08/2014)

“Junto da emoção de ver grupos de jovens gritando por seus autores — como nos tempos da Beatlemania —, lutando por senhas, revelando serem os livros objetos de sonho, surgem também algumas indagações. A principal delas é entender que outros fatores, além dos econômicos e do resultado do progresso social, nos fizeram chegar à atual realidade do mercado editorial brasileiro. Um fator extra-econômico e exclusivamente literário se chama Harry Potter. Grande parte do público que lota as bienais é filho de J. K. Rowling. Ou seja, adquiriu o prazer da leitura com o herói de óculos redondo, assim como a minha geração o adquiriu com Lobato ou com o Tesouro da Juventude. Escritores que sabem seduzir os jovens são desbravadores. Eles são os bons fantasmas que estão escondidos nos corredores da Bienal, e explicam muita coisa. O público jovem foi o grande motor de superação da possível dormência de um país iludido pela Copa do Mundo. Os jovens não pararam de ler John Green, Kiera Cass, Veronica Roth, George R. R. Martin, Cassandra Clare etc.”  Luiz Schwarcz (Leia o texto completo em: http://www.blogdacompanhia.com.br/2014/09/a-geracao-perdida/)

Novas plataformas, redes sociais e leitura:
» Bookstacks (livrarias online) - http://bookstacks.org/


» Comunidades de leitores:
» Comportamentos leitores:
» Espaços de afinidade
» Integração entre os novos e os veteranos
» Leitores assumindo o papel de críticos, mediadores, formadores
» Discussão das experiências literárias
» Produtos – livro | filme | outros
» Velocidade das transformações
     »»» situação de desorientação dos mediadores.
» Qual nosso papel como mediadores?
» Acompanhar, se atualizar, se aproximar = ENTENDER
» Repensar ações e estratégias
» Discutir
» Olhar para o leitor mais do que para as plataformas
» O suporte não é uma questão
“Talvez seja por um convite às atividades do imaginário que as sociedades modernas substituem ou talvez adocem os ritos de iniciação que outras sociedades impõem aos seus adolescentes /.../. Pergunta: devemos escolher entre enviar um adolescente para
a psicanálise ou escrever romances para ele?” Julia Kristeva

Daniel Delbrassine, levanta a seguinte hipótese sobre a função do romance juvenil hoje:
Esta literatura não seria complementar à ausência (ou ineficiência) do discurso de adultos para as gerações futuras?

“A incapacidade das nossas sociedades ocidentais para pensar e dar um significado simbólico à transição das idades certamente deixou um espaço virgem sobre o qual a obra de Rowling se abriu sem encontrar obstáculos.” Benoît Virole

» Desaparecimento das grandes formas de iniciação e o esfacelamento dos ritos que supostamente representam
» Dificuldade do diálogo intergeracional
» Descrédito que recai sobre os pais, que nem sempre desempenham suas responsabilidades
» Déficit de comunicação com os adolescentes
» Função iniciática ou educativa do romance que lhes é destinado – Transmitir, pela história de ficção:
» memória
» valores
» usos culturais.
g | Desafios deste mercado
» Que leitores queremos formar?
“A qual forma de ler nos referimos, no senso comum, quando dizemos que o brasileiro lê pouco? De que leitor falamos? O que esperamos de um país que lê? A resposta, ou pelo menos um ensaio de resposta, a essa pergunta pode seguir por dois caminhos. O primeiro deles diz respeito à leitura de caráter pragmático, que permite ao sujeito se mover na cidade, trabalhar, consumir lazer e entretenimento, comunicar-se pela escrita. /.../ A segunda direção nos leva a um tipo de leitura que não se satisfaz no enfrentamento do cotidiano. A leitura como especulação da vida, como vislumbramento do mediato, exige um outro tipo de leitor e um universo mais ampliado de textos. /.../” Fabíola Farias

Leia o artigo completo: “Ler para quê? : necessidades e ferramenta de transformação”, de Fabíola Farias, na Revista Emília: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=434

» Aposta numa em leitores inteligentes, criativos, plugados, informados e críticos:
» Fim dos temas tabus
» Aposta na qualidade literária (conteúdo)
» Aposta na qualidade gráfica
» Novas plataformas
» Superar a maioridade e entrar no mundo adulto da LIJ?
» Repensar os “modelos” a partir do receptor
» Pensar em mediadores críticos
» Que literatura queremos?
» Identificar os diferentes gêneros dentro da LIJ
» Qualificação do mercado (do autor – ao livreiro) à Crítica
» Leitura como uma atividade cultura


Conteúdo apresentado por DOLORES PRADES no módulo PANORAMA DO LIVRO PARA JOVENS, dia 30 de setembro na Biblioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte.